quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Uma Noite com Minha Avó

                               Sentado ao lado da minha avó materna deitada no que provavelmente será seu leito de morte, enquanto ela geme, eu escrevo estas linhas que aqui vão. Não é nada confortável participar do sofrimento de qualquer pessoa, mas talvez principalmente de alguém a quem se estime.
                               Bem, deste pequeno, a casa da minha avó era para mim algo sagrado, e eu sempre nutri um respeito por ela quase religioso. Minha avó era como uma pessoa pura, sem pecados e seu abraço quando nos recepcionava só vinha a confirmar isso ainda mais, bem como sua história de vida, o respeito que os filhos lhe impingiam. Queria agora poder consultá-la, por exemplo, no que tange o momento de minha vida, pelo qual estou passando, pois ela tinha sempre palavras sábias. Saberia assim, como ninguém, sem dar conselhos, sem nada, iluminar-me o caminho.
                               Tive que parar de escrever agora para atender à solicitação dela de água. Ela continua gemendo, seu pulso e sua respiração estão rápidos. Enquanto escrevo aqui, estou segurando o pulso dela. Meu receio é que ela morra de fato justamente esta noite, quando que a família não se encontra preparada para tal , arriscando até mesmo que alguns possam achar que eu tenha sido o culpado pela sua morte. É triste, lamentável mesmo, que alguém com uma vida como a da minha avó esteja ainda precisando passar por isso. Ela também sempre foi uma cristã devota. Nunca irei entender os desígnios de Deus, não são mesmo para serem entendidos.
                               Ela está delirante agora, diz que ela mesma quer fazer uma sopa, mas que tem que ser na sua casa, e que se assim fosse comeria com gosto. Também chama pela Dioclésia (nome fictício, somente para preservar a identidade das pessoas) uma de suas filhas, que não está aqui. Mas ela chama como se essa filha estivesse. Acabei de deixá-la novamente em decúbito dorsal, e reposicionei suas pernas. Às vezes, ela da um suspiro profundo que termina com uma série de gemidos, outras vezes ela começa a soluçar.
                               Há quinze anos ou mais quando ela orava comigo nesta casa, jamais poderia prever que a sala onde oravamos se tornaria seu quarto, e que eu estava aqui ao seu lado, praticamente já a velando. Minha mãe dorme no sofá em frente. Eu sei que ainda poderei ver essa cena se repetir de forma ainda mais intensa para mim, no caso de ser minha mãe que eu estivesse agora fazendo o papel que estou. Também não sei se reagiria da mesma forma com a qual estou reagindo agora aqui com minha avó materna. Desconfio que talvez ela esteja evacuada. Sinto um leve odor de fezes que não tenha certeza se é isso, mas como ela está gemendo muito pode realmente ser. No entanto, o meu nariz também já não está tão treinado para saber se é ou não, em decorrência dos anos cuidando de doentes nos hospitais em que atuei primeiro como Técnico em Enfermagem, depois como Enfermeiro, onde por fim o cheiro muitas vezes já se confundia com o próprio cheiro do ambiente, era o próprio cheiro do ambiente em alguns casos.
                               Nesse instante, acabei de virar ela para o lado esquerdo, ao que ela parou de gemer. Parece que nessa posição na minha avó se acomodou melhor, ou o fato de ter sido movimentada fez com que percebesse a presença de alguém por perto, o que lhe acalmou. Mas sua respiração está ainda ruim. Nessas horas chego a me questionar se não é melhor a internação em um hospital, onde ela receba ao menos uma analgesia mais forte, em alguns hospitais estaria até mesmo na UTI, intubada, sob sedação. Mas sei também que o custo de uma internação hospitalar não é barato, nos últimos sete dias que minha avó ficou no hospital antes de voltar para casa, meu avó gastou em torno de R$ 8,000 só com a internação, fora os gastos com as viagens, alimentação, etc. Não que ele não tivesse condições de bancar, mas não sei se não seria um desperdício, sendo o fim o mesmo. Se internasse pelo SUS, teria uma acomodação bem pior, restrição de visitas, etc. Agora ela parece dormir, no entanto, seus olhos permanecem abertos. O que ela olha eu não sei. Ainda há pouco iniciou uma estranha oração que me deixou muito espantado, pois nitidamente pela sutileza da utilização dos pronomes pessoais, diria que se trata de um texto bíblico, mas ela proclamava de tal forma que mais parecia estar tendo uma conversa com algum santo, ou com o próprio Deus. Deve ser só imaginação minha mesmo. Vou aproveitar esse momento de silêncio dela, para ir à rua fumar um cigarro. Espero não ter que apagar o cigarro pela metade por causa de algum gemido dela.
                               A clorpromazina que lhe administrei, um antipsicótico do grupo das fenotiazinas, deve ter feito efeito. Deu para fumar todo o cigarro, beber um gole de café e ainda comer algumas broinhas. Depois um gole de água, escovar os dentes e pronto. Tem que se andar muito devagar, pois o assoalho estrala todo. Fui à rua e misteriosamente os sapos pararam seus coachos. Ouvia-se apenas o barulho do riacho, os grilos noturnos e alguns gados mugindo longe. Lá fora, a natureza seguia seu curso normal, fazendo sua justiça que em nada tem haver com a nossa. Na natureza, há um sentido! Queira ou não, dentro desta casa a Natureza também agia.
                               Reparo o rosto de minha avó que onde antes estavam as bochechas agora está uma cova de cada lado do rosto. Seria o momento certo para dormir, porque ela ainda permanece quietinha, mas não posso correr o risco de minha avó morrer sem que ninguém perceba. Apesar de seus olhos terem se cerrado, suas mãos não param. Ela retira a coberta de cima do tórax, mas pelo menos suas mãos não estão cruzadas sobre o peito como ainda há pouco. Sua respiração ainda é ofegante. Minha mãe começa a ressonar no sofá. Mesmo dentro de casa ainda ouço os grilos lá fora, e o tit tac do relógio de parede aqui dentro. Minha mãe começou a roncar, espero que não acorde minha avó. É bom que ela durma, pois no meio da madrugada vou revezar com ela. Meu avô deve estar dormindo. Está no seu quarto e como não ouço nada, e a luz parece apagada eu espero mesmo que esteja dormindo, pois que já está na idade de oitenta e poucos anos (desculpem se não sei sua idade exata) e consta ainda que nada dormiu na noite passada, pois ficou cuidando de minha avó toda a noite. Ele dizia hoje no início da noite que não estava com sono, mas seus olhos vermelhos não o deixavam mentir. Nessas horas ainda consigo pensar nos meus problemas. Minha mãe acorda agora e me vê escrevendo, volta a dormir. Escrevo à mão para que o barulhinho das teclas do teclado não perturbe minha avó, ou mesmo minha mãe. Já um mosquito irritante veio três vezes zumbir no meu ouvido. Tentei esmagá-lo, em vão. Os cachorros de minha madrinha, que fica há uns cem metros daqui, começam a latir.
                               As quatro da madrugada meu avó acorda, acende a luz e tenta conversar alguma coisa com minha avó, que pouco responde. Logo ele volta a dormir.
                               Do meu lado direito na parede, tem uma foto do casal já velhinhos, com seus dez filhos. A maioria está séria. Acima e atrás na parede ainda na mesma foto um crucifixo, cujo fotógrafo, conseguiu a destreza de “cortar” a parte superior, mas ainda assim Jesus Cristo aparece por completo, posto que está pendurado pelas mãos. Do meu lado direito ainda, e bem do lado da poltrona que estou sentado, um presépio simbolizando o nascimento de Jesus, na manjedoura, com o carneirinho, o burrinho, uma vaca, José e Maria. Ficaram faltando os três reis magos. Alguns insetos voam em torno do abajour aceso, única luz a clarear este momento lúgubre...
Diante de toda a dificuldade que com meus próprios olhos fui capaz de ver, no que tange a situação de saúde de minha avó materna, percebo que, apesar do câncer em sua pelve que já se espalha pelo abdome, apesar da dor que muitas vezes a faz gemer, pedir socorro, existe um grupo de pessoas que acabam por estarem de certa forma precisando de mais ajuda do que minha própria avó. Um grupo de pessoas com uma carência psicológica, uma família incapaz de lhe dar com os conflitos internos da vigência de perderem um dos membros fundamentais, um dos seus pilares. Não se espera mesmo racionalidade em um momento como estes, mas o mínimo ao menos de bom senso se deveria esperar. Críticas veem afetar as pessoas que talvez sejam as que mais estão desempenhando esforços no sentido de cuidarem deste doente, e parte normalmente daquelas que menos esforço estão empregando. A família tenta se organizar, para que todos passem a desempenhar o papel de cuidadores, mas não é fácil, porque em meio a correria do dia a dia, sufocados pela rotina macerante do trabalho, não conseguem um momento de fuga em que possam gozar, por assim dizer, destas últimas horas com essa pessoa que foi quem cuidou e alimentou estes outros até chegarem a idade de andarem com suas próprias pernas, ou seja, de se autossustentarem. Claro que não posso falar de todos, além do tempo, também tem as limitações pessoais de cada um, em lhe dar com esse tipo de situação, isso também deve ser respeitado, obviamente.
                               De quando em quando minha avó emerge de seu sono para em uma semi-lucidez solicitar água, chamar pelo seu esposo E., pedir ajuda. Seu olhar é perdido, ela tenta mirar os rostos das pessoas, mas não emite qualquer expressão que denote que os tenham reconhecido.
                               A noite finalmente terminou, a quinta-feira veio com uma manhã de serração, uma manhã tranqüila neste interior. Muitos pássaros rodeiam a casa com seus cantos. Alguns insetos ainda são audíveis, grilos para ser mais preciso. As cigarras devem começar seus cantos mais tarde, caso saia sol. Minha avó está mais tranqüila, mas não quis se alimentar, pediu apenas água. Está acordada, mas não geme no momento. Eu termino de redigir esse texto olhando para ela, ou para o que representa ser ela nesse instante, mas lembrando de como ela foi...

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